segunda-feira, 26 de abril de 2010

REDES SÃO AMBIENTES DE INTERAÇÃO, NÃO DE PARTICIPAÇÃO

Temos afirmado que redes sociais são ambientes de interação, não de participação.

A afirmação é válida, claro, para redes distribuídas, quer dizer, mais distribuídas do que centralizadas. Quanto mais distribuída for a topologia de uma rede, mais ela poderá ser i-based (interaction-based) e menos p-based (participation-based).

Essa discussão ganhou força agora com a busca por ferramentas digitais – plataformas interativas na Internet – mais adequadas ao netweaving, quer dizer, para servir de instrumentos de articulação e animação de redes sociais (1).

Três hipóteses surgiram para explicar por que as plataformas interativas disponíveis que foram desenvolvidas para a gestão de redes sociais (ou até mesmo para serem, elas próprias, “redes sociais”) não são boas ferramentas de netweaving:

Em primeiro lugar porque seus desenvolvedores confundem midias sociais com redes sociais, tomam a ferramenta (digital) pela rede (social), quando redes sociais são pessoas (conectadas, interagindo), não ferramentas!

Em segundo lugar porque, sob o influxo da chamada Web 2.0, as plataformas disponíveis são baseadas na participação (p-based) e não na interação (i-based). Assim, não se regem pela lógica das redes mais distribuídas do que centralizadas, quer dizer, pela lógica da abundância (2), mas sim pelo regime da escassez (e ao aceitarem tal condicionamento, de ter que funcionar em condições de escassez quando já há abundância, reproduzem desnecessariamente escassez, rendendo-se a um tipo de "economia política" onde a política é um modo de regulação não-pluriárquico). Não é outro o motivo pelo qual ativam mecanismos de contagem de cliques, instituem votações e atribuições de preferências baseadas na soma aritmética, que significam regulações majoritárias da inimizade política. Ora, isso enseja a formação de oligarquias participativas que tentam organizar a auto-organização (como ocorre, por exemplo, na Wikipedia).

Em terceiro lugar - e como conseqüência do seu fundamento p-based - as plataformas de articulação e animação de redes sociais (que já se encaram, algumas delas pelo menos, como se fossem as próprias redes sociais), ainda estão voltadas para organizar conteúdos (encarando, inevitavelmente, o conhecimento como um objeto e não como uma relação social). Esse é um problema porquanto a gestão do conteúdo, do conhecimento-objeto, ao tentar traçar um caminho para os outros acessarem tal conteúdo, cava sulcos para fazer escorrer por eles as coisas que ainda virão (na e da interação), com isso repetindo passado e trancando o futuro (como fazem as burocracias sacerdotais do conhecimento, mais conhecidas pelo nome de escolas e não é por acaso que boa parte dessas plataformas tenha sido pensada por professores ou construída para atender a objetivos educacionais, entendidos como objetivos de ensinagem e não de aprendizagem). Mas para uma plataforma i-based - adequada ao propósito de servir de ferramenta para o netweaving - não se trataria de pavimentar uma estrada para os outros percorrerem e sim de possibilitar que cada um pudesse abrir seu próprio caminho (posto que redes são múltiplos caminhos).

Ademais, ao contrário do que acreditam os supostos especialistas em redes sociais na Internet, não é o conteúdo do que flui a variável fundamental para explicar a fenomenologia de uma rede e sim o modo-de-interagir e suas características, como a freqüência, as reverberações, os loopings, as configurações de fluxos que se constelam a cada instante, os espalhamentos e aglomeramentos (clustering), os enxameamentos (swarming) que irrompem, as curvas de distribuição das variações aleatórias introduzidas pela imitação (cloning) que produzem ordem emergente (a partir da interação), as contrações na extensão característica de caminho (crunch) dentro de cada cluster etc. Quando as pessoas que tomaram consciência das redes sociais a partir da Internet começarem a cogitar essas coisas, talvez consigam desenvolver uma ferramenta mais adequada ao netweaving de redes sociais (3).

Mas para compreender essas observações é necessário entender qual é, afinal, a diferença entre interação e participação. A questão é fundamental porque, de certo modo, entender isso é entender as redes.

INTERAÇÃO ≠ PARTICIPAÇÃO

A palavra participação designa uma noção construída por fora da interação. Participar é se tornar parte ou partícipe de algo que não foi reinventado no instante mesmo em que uma configuração coletiva de interações se estabeleceu, mas algo que foi (já estava) dado ex ante. Como se a gente sempre participasse de algo “dos outros”. Não é por acaso que a expressão 'democracia participativa' é aplicada até hoje para designar diversas formas de arrebanhamento, inclusive uma variedade de experiências assembleísticas adversariais, onde a tônica é a luta, a disputa por maioria ou hegemonia e se pratica a política como “arte da guerra” lançando-se mão de modos de regulação de conflitos que geram artificialmente escassez (como a votação, o rodízio, a construção administrada de consenso e, inclusive, sob alguns aspectos, o sorteio).

Mas isso não significa exatamente, como pode parecer à primeira vista, que interagir, então, diga respeito somente à atuação em algo "nosso" enquanto participar diga respeito à atuação em algo "dos outros".

Não, não é bem assim, a menos que esse "nosso", aqui, não seja tomado num sentido proprietário (como eufemismo, para dizer "meu") em contraposição ao "dos outros" (“deles”). O "nosso" conformado na interação não se pré-estabelece, não conforma uma identidade identificável com um grupo determinado de agentes antes da interação, ao contrário do "nosso" (na lógica coletiva de um "eu" organizacional já construído) quando esse "nosso" foi instituído por um grupo que, ao fazê-lo, estabeleceu uma fronteira (dentro ≠ fora) independentemente da interação fortuita que já está acontecendo e que ainda virá. Neste caso, a organização será um congelamento de fluxos, uma cristalização de uma situação pretérita, um pedaço do passado cortado que se enxerta continuamente no presente para manter as configurações que, em algum momento, atribuíram a determinadas pessoas certos papéis que se quer reproduzir (essa é a história da liderança, ou melhor, da monoliderança, dos líderes que, tendo liderado algum dia, querem se prorrogar, eternizando uma constelação passada para continuar liderando).

Assim, se eu faço uma organização ou lanço um movimento e chamo uma pessoa para nela entrar ou a ele aderir, estou chamando-a à participação. Estou abrindo a (minha) fronteira para que o outro possa entrar. Numa rede (mais distribuída do que centralizada), as fronteiras são sempre mais membranas do que paredes opacas, não precisam ser abertas, não se estabelecem antes da interação e todos os que estão em-interação estão sempre "dentro" (aliás, estar "dentro", neste caso, é sinônimo de estar interagindo, mesmo que alguém só tenha começado ontem e os demais há anos). Estarão “dentro” também os que ainda virão, quando passarem a interagir, sem a necessidade de serem recrutados, provados, aprovados, admitidos e iniciados pelos que já estão.

A diferença parece sutil, mas é brutal no que diz respeito ao funcionamento orgânico. O participacionismo (que contaminou a chamada Web 2.0, como percebeu pioneiramente David de Ugarte) instituiu modos de regulação que produzem artificialmente escassez (e, portanto, centralizam a rede, gerando oligarquias participativas compostas pelos que mais participam, pelos que são mais votados ou preferidos de alguma forma – mais ouvidos, mais lidos, mais comentados, mais adicionados, mais seguidos –, os quais acabam adquirindo mais privilégios ou autorizações regulatórias do que os outros). Formam-se neste caso inner circles, instâncias mais estratégicas do que as demais (os outros clusters e as pessoas comuns, não-destacadas da “massa”), que passam, estas últimas, para efeitos práticos, a serem consideradas táticas (para os propósitos dos estrategistas, dos que possuem mais atribuições): e não é a toa que os membros do “círculo externo” freqüentemente são chamados de “público”, “usuários”, (meros) “participantes”, com permissões mais restritas e poderes regulatórios diminutivos (4).

Em um sistema baseado na interação, a regulação é pluriárquica, quer dizer, é sempre feita com base na lógica da abundância: ou seja, as definições dependem das iniciativas das pessoas que queiram tomá-las ou a elas queiram aderir, jamais impondo-se, o que pensam alguns, aos demais (por critérios de maioria ou preferência verificada). Assim, em um sistema baseado na interação, nunca se decide nada em nome do sistema (a organização em rede), ninguém fala por ele, ninguém pode representá-lo ou receber alguma delegação do coletivo (porque, na ausência de representação, esse “eu = ele” coletivo não pode expressar-se (por hipóstase) como um ser de vontade ou que seja capaz de acatar qualquer vontade, ainda que fosse a vontade de todos). E não há deliberação porque não há necessidade de deliberar nada por alguém ou contra alguém ou a favor de alguém (que tivesse que delegar ou alienar seu poder a outrem).

Tomemos como exemplo a Escola-de-Redes (E=R), que usa como ferramenta de netweaving a plataforma Ning. Conquanto a plataforma Ning não ajude tanto, pois que ela não é suficientemente i-based, nunca se fala em nome da escola (que é, na verdade, uma escola-não-escola), nunca se promove nada pela escola e nem mesmo o seu "criador" (na linguagem do Ning), pode empenhar, emprestar, parceirizar a sua marca para coisa alguma, ainda que fosse para propor um simpósio, uma conferência ou outra atividade totalmente dentro do escopo da rede (5). Em outras palavras, não há um ativo organizacional que possa ser apropriado (nem mesmo como patrimônio simbólico) por alguém em particular, porque as regras pluriárquicas (estabelecidas na constituição da rede E=R) não permitem.

Dessarte, não há um "nós" organizacional que estabeleça uma fronteira entre os "de dentro" e os "de fora". Todos que estão fora podem entrar. Todos os que estão dentro podem sair (e podem voltar a qualquer momento; e sair de novo, quantas vezes quiserem). Entrar não significa pertencimento a algum corpo separado do meio por fronteiras impermeáveis, nem adesão (ou profissão de fé) a algum codex e sair não significa discordância, “racha”, deserção, traição, divórcio ou qualquer tipo de ruptura. E quem é da Escola-de-Redes afinal? Ora, quem quiser nela se conectar e interagir, aqui-e-agora. Quem saiu não é mais, mas não porque tenha se desligado e sim porque não está interagindo. Quem não entrou não é ainda, mas não porque não tenha sido aprovado e aceito e sim porque, igualmente, não está interagindo.

A fonte – escreveu Goethe num insight heraclítico – só existe enquanto flui. Rede é fluição. Um nodo de uma rede só o é nisi quatenus interage.

É certo que, mesmo nas redes mais distribuídas do que centralizadas, a freqüência e outras características da interação, vão ensejando a formação de laços internos de confiança, de sorte que nem todos são iguais no que tange ao que correntemente se chama de liderança. Algumas pessoas podem ter oportunidades de serem mais avaliadas pelas outras e até de obterem uma adesão maior às suas iniciativas do que as outras, em virtude da sua interação, quer dizer, do seu modo-de-interagir e do seu, vá lá, histórico de interação (mas não de qualquer atribuição diferencial que tenham recebido de fora ou de cima ou mesmo em virtude da adoção de modos de regulação geradores de escassez que recompensem algum esforço de participação voltado a "ganhar" as demais pessoas, conquistando hegemonia ou maioria). Nas redes (mais distribuídas do que centralizadas) não se quer regular a inimizade política e sim deixar que a amizade política auto-regule o funcionamento do sistema. Não há um corpo docente, uma burocracia coordenadora e, nem mesmo, um time ou equipe de facilitadores (cuja formação seja baseada em critérios de mérito ou conhecimento, antiguidade, popularidade ou outra característica qualquer que não possa ser verificada e checada intermitentemente na interação).

Esse é o motivo pelo qual nas redes sociais (mais distribuídas do que centralizadas) não se deve (e enquanto elas forem mais distribuídas que centralizadas, não se pode) montar uma patota dirigente, coordenadora, facilitadora ou erigir uma igrejinha de mediadores. A construção de um “nós” organizacional infenso à interação ou protegido contra a imprevisibilidade da interação para manter sua identidade ou integridade (e, supostamente, para assegurar – como guardiães – que a organização não se desvie de seus propósitos, não viole seus princípios e não saia fora de seu escopo), ao gerar uma identidade compartilhada por alguns “mais iguais” que outros, centraliza a rede, deixando-a à mercê do participacionismo; quando não de coisa pior.

Sim, reconheçamos que é difícil não tentar organizar a auto-organização. E que é dificílimo não tentar reunir alguns para, como se diz, “colocar um pouco de ordem na casa”. Mas aqui vale aquela frase brilhante de Frank Herbert, uma pérola garimpada em “O Messias de Duna” (1969): “Não reunir é a derradeira ordenação”. Para quê re-unir o que já está unido = conectado (interagindo)? E se é assim, por que reunir apenas alguns para organizar mais, quando se pode ensejar a ordenação emergente de muitos mais?

A tentação de estabelecer uma fronteira opaca, o medo de se deixar abrigar (ou de se proteger do “mundo externo”, do outro – das outras organizações) apenas por uma membrana (permeável aos fluxos e, portanto, vulnerável à interação) assola constantemente as organizações, mesmo aquelas que querem transitar para um padrão de rede distribuída. Talvez isso ocorra em virtude de uma confusão entre interação e troca de conteúdo. Boa parte das pessoas que tratam do assunto, inclusive das que se dedicam a investigar ou experimentar redes sociais, confunde interação com troca de informação e gestão de conteúdo (sobretudo tomando por conteúdo conhecimento). Como imaginam, essas pessoas, – com certa razão – que o conhecimento seja cumulativo, querem bolar uma arquitetura da informação, urdir schemas classificatórios, desenhar árvores para mapear relações (que ainda não se efetivaram) e organizar os escaninhos para depositar o conhecimento que vai sendo construído coletivamente. Na falta de mecanismos de busca semântica, querem “colocar as coisas nos lugares certos” para facilitar a navegação dos demais. Mas ao fazerem isso, animados pela boa intenção de organizar o (acesso ao) conhecimento para os demais, acabam erigindo uma escola (como ocorre, de certo modo, com uma parte dos que adotam plataformas wikis e plataformas ditas educacionais), quer dizer, uma burocracia do ensinamento, inevitavelmente centralizada (6).

Bem, mas então pode-se perguntar: como mensurar a interação em uma rede a partir do que ocorre em uma plataforma virtual de netweaving? Antes de mais nada é preciso saber o que queremos e devemos medir em termos de interação.

Não se trata de saber se um nodo interage mais do que os outros (se fizéssemos isso decairíamos para um tipo de participacionismo ou de rankismo, típicos da Web 2.0) e sim de medir a “efervescência” do (no) sistema. Como ao medir a temperatura de um gás, não nos interessa saber qual molécula se “chocou” com o maior número de outras moléculas e sim o estado geral do sistema: se a temperatura subiu é porque a amplitude média do movimento vibratório das moléculas aumentou. Para avaliar isso, não adianta contar cliques, verificar o número de mensagens de blog, comentários, vídeos, fotos etc. postados por uma pessoa ou por todas as pessoas: é necessário captar a responsividade geral da rede ou de cada cluster no caso de uma rede extensa. Existem plataformas no Ning, por exemplo, com dezenas de milhares de pessoas conectadas, onde cada pessoa entra (em geral entra recorrentemente apenas 1% das pessoas conectadas, mas isso pode ser muito, dependendo, é óbvio, do número total de registrados na plataforma), publica um conteúdo qualquer, porém... a despeito de tudo isso, a interatividade é muito mais baixa do que em outras plataformas com um número de conectados (e de “tráfego” total) até 100 vezes menor.

A conversa sobre o tema é longa e ainda estamos tentando visualizar mecanismos que dêem conta do formigueiro e não das formigas: como se sabe, é o formigueiro que (se) reproduz (como padrão), não as formigas. Por isso a comparação com o formigueiro, que causa repugnância a alguns (que alegam que as formigas não têm consciência e não podem fazer escolhas racionais) não é despropositada. A cientista Deborah Gordon (Stanford) descobriu que o formigueiro é i-based, ou seja, que além de nele não haver nada que se possa chamar de administração, a auto-organização é feita a partir da freqüência e de outras características da interação das formigas entre si e com o seu ecossistema e não de algum conteúdo que elas tenham trocado entre si (nem mesmo se tal conteúdo for uma substância química, como se supunha).


Notas e referências

(1) A lista é extensa: vai de plataformas desenhadas para servir de suporte para redes sociais (como Ning, Elgg, BuddyPress, Grouply, Grou.ps, Yuku, Meezoog, Spruz, Noosfero etc.) passando por ambientes compartilhados de programação (como Drupal), por sites de relacionamento (que se apresentam como se fossem, eles próprios, as redes sociais e não suas ferramentas (como Facebook, MySpace, Orkut), por ambientes para organização coletiva de projetos ou para elaboração e compartilhamento de conteúdos (como Google Docs, A.m.i.g.o.s, todas as wikis, como Confluence e as Wikimedias web), até plataformas educacionais (entendidas mais como plataformas de ensino, como Cube Tree e Edmodo entre dezenas de outras). Uma lista não-organizada de algumas plataformas mais ou menos interativas, levantada recentemente na Escola-de-Redes, incluiu cerca de três dezenas de plataformas. Em ordem alfabética: A.m.i.g.o.s, Boonex, BuddyPress, ColaboraCom (um exemplo de aplicação desenvolvida), Confluence (wiki, que pode ter plugins: como "Community Bubbles"), CubeTree, Drupal, Edmodo, Elgg, Facebook, Google Docs, Google Groups, Google Sites, Grou.ps, Grouply, Groupsite, Jabbster, Junto (em projeto), Kunigo, Linked In, Lovd By Less, Meezoog, MySpace, Ning, Noosfero, Orkut, People Movers, Posterous, ShoutEm, SocialGO, Spruz, Stoa (um exemplo de aplicação desenvolvida com Elgg + Wordpress), Sugarlabs, Wikimedia Brasil (outro desenvolvimento aplicado), Yuku.

(2) Cf. FRANCO, Augusto (2009): A lógica da abundância http://twitdoc.com/c/c7tars

(3) Os parágrafos transcritos aqui foram colhidos no texto FRANCO, Augusto (2010): Por que as plataformas digitais não são boas para redes sociais http://twitdoc.com/c/k3qqh8

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